Esta escrita é como nada que alguma vez tenha lido. As primeiras quarenta páginas não têm uma paragem que seja, somos sugados imediatamente para uma tropelia de pensamentos e uma sequência de eventos que só nos faz parar no final. À boa tradição norueguesa, Jon Fosse é um exemplo vivo de stream of consciousness, mas aqui parece mais da inconsciência porque estamos ora aqui, ora noutra vida, noutros tempos.
A escrita apesar de ser um chorrilho de pensamentos, não é nada complicada, é até bastante básica e simples, sem palavras sofisticadas – tal qual falamos com nós mesmos. E ainda bem que a parte formal é simples, porque a camada conceptual é outra história. Este livro não tem linha temporal, e cruza três histórias trágicas da mesma família que sempre viveu à beira mar, e sempre teve acidentes com barcos. Começa com a narradora em 2002 a lamentar a morte do marido que aconteceu nos anos 70, numa noite escura e de temporal. Porque é que ele foi? Porque é que ia tantas vezes? Porque é que ela ficava parada à espera dele? E quando estamos na cabeça dela, entra um “pensa ele” e já estamos na cabeça dele. Da primeira vez que acontece parece uma gralha, mas rapidamente aprendemos que é assim mesmo, há que estar atento. Há que compreender que quando o marido olha para a margem e vê uma fogueira, já estamos a ver a fogueira da tetravó, e que quando olha para um barco, pode ser o barco dele ou pode ser o barco do tio-avô que morreu afogado a tentar apanhá-lo.
É mesmo original, e esta história em particular é muito bela, permanentemente triste e sobre a perda e o luto. É entrar num lugar que normalmente é único.
Achei tão interessante não ter linha temporal, que até pensei que uma visualização interessante para o livro seria marcar os saltos entre as três histórias, como uma anotação de quem passa a bola para quem. Fica a ideia, para quando o reler.